O Mês Lilás não se resume a uma campanha simbólica: é um espelho das contradições históricas que atravessam a vida das mulheres no Brasil. A cada agosto, a sociedade é convocada a refletir sobre um problema que vai muito além das estatísticas — a violência contra a mulher é expressão de uma cultura patriarcal profundamente enraizada, que ao longo dos séculos reduziu o feminino à condição de objeto, submisso e descartável.
Essa herança da objetificação histórica da mulher se perpetua nas relações sociais, nas instituições e até mesmo nas políticas públicas. O resultado é a naturalização da violência, que se converte em números alarmantes. Porto Seguro, por exemplo, aparece em 14º lugar entre as cidades mais violentas do país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024. Esse dado não é um acidente estatístico, mas um retrato da persistência de desigualdades estruturais que se traduzem em agressões físicas, psicológicas, patrimoniais e até letais, atingindo toda a sociedade do local com fama de paraíso.
Nos últimos anos, aqui foram registrados casos de grande repercussão que chocaram a sociedade, como o da adolescente Nayara Gatti, assassinada em Caraíva, e da mulher que, após ser agredida e ter o corpo incendiado pelo companheiro, pulou da janela de um apartamento para escapar da morte, sofrendo diversas lesões na queda. Ao lado desses episódios de brutalidade extrema, existem ainda inúmeros outros casos, menos notórios, que se repetem diariamente e acabam caindo na banalização social e institucional da violência contra a mulher. O silêncio diante dessas situações revela o quanto a sociedade ainda naturaliza práticas de opressão.
Contudo, a história também é feita de resistências. As lutas feministas, os coletivos de mulheres e o empenho de setores comprometidos têm arrancado conquistas, ainda que insuficientes diante da dimensão do problema. Um exemplo desse esforço é a criação do Batalhão de Policiamento de Proteção à Mulher, sob o comando da tenente-coronel Roseli de Santana Ramos, que foi palestrante no seminário “Vozes que Protegem!”, realizado nesta quinta-feira, dia 14 de agosto, no Centro de Cultura de Porto Seguro. O Batalhão reforça a ideia de que a proteção das mulheres exige mais do que repressão: demanda escuta, acolhimento e redes de cuidado. É o segundo do tipo no Brasil, sediado em Salvador, mas com atuação em todo o Estado, o que sinaliza uma tentativa de resposta institucional ao cenário de violência.
Em geral, dentro das ações desenvolvidas no Mês Lilás, ganha força a reivindicação por uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) que funcione 24 horas por dia, 7 dias por semana, com agentes mulheres no atendimento, condição indispensável para que vítimas encontrem coragem e segurança ao denunciar. Estão também o fortalecimento das Rondas Maria da Penha, que reforçam o policiamento ostensivo voltado à prevenção da violência contra a mulher. Mais do que proteger vítimas já ameaçadas, essas iniciativas buscam desarticular ciclos de violência antes que se tornem irreversíveis. Elas também trazem à tona uma verdade muitas vezes invisibilizada: a violência doméstica não escolhe classe social ou raça. Atinge tanto mulheres pobres quanto ricas, negras ou brancas, evidenciando que o machismo estrutural se infiltra em todas as camadas da sociedade.
O Mês Lilás, portanto, é um convite a encarar as raízes do problema: a violência não nasce no ato da agressão, mas em uma sociedade que ainda insiste em controlar, silenciar e subalternizar as mulheres. Enfrentá-la implica questionar as estruturas de poder, fortalecer as políticas públicas e multiplicar os espaços de acolhimento.
Mais que uma data no calendário, o Mês Lilás é um ato político de memória e resistência — um grito coletivo de que nenhuma vida pode ser descartada, nenhuma violência pode ser banalizada e nenhum direito pode ser negado. A responsabilidade é de todos: do Estado, que precisa garantir políticas públicas eficientes; da justiça, que deve punir com rigor os agressores; e da sociedade, que precisa romper com o silêncio cúmplice e combater o machismo em todas as suas formas.
Não se trata apenas de lembrar as vítimas, mas de honrá-las com mudanças concretas. Porque o direito das mulheres a uma vida digna, livre de violência, não pode mais ser promessa: deve ser realidade cotidiana.